Um projeto audiovisual resgata histórias de luta e dá voz aos moradores de dois bairros. São memórias vivas de um passado difícil e de uma comunidade que se uniu para construir um futuro melhor
No topo de uma colina, com a cidade e o rio aos pés, espreitam os bairros dos Pescadores e Grito do Povo. Ali, guardam-se memórias de lágrimas e vidas difíceis, mas também de esperança numa vida melhor.
Este é o mote para o documentário “O Nosso Filme”, produzido pela Monstro Colectivo Associação Cultural com financiamento da Câmara Municipal de Setúbal, no âmbito do programa Viver Anunciada.
Mais do que um filme, é um projeto coletivo no qual os protagonistas são os moradores dos dois bairros, que se evolveram nas diversas fases da produção. Participaram em reuniões, discutiram ideias, filmaram, conduziram entrevistas e deram a cara pelas próprias histórias.
“O filme tem de começar pelo céu e o mar.” A ideia lançada por uma moradora num dos encontros de preparação, conduzidos pelos realizadores João Bordeira e Sérgio Braz d’Almeida, é aceite para o primeiro plano. “O que é ‘O Nosso Filme’?”, questiona o primeiro.
Os moradores não têm dúvidas. Querem falar do passado e do presente, mergulham a câmara no quotidiano dos bairros e nas pessoas que os povoam, num guião que transmite as emoções de vidas duras e de luta nos antigos bairros do Castelo Velho, hoje Grito do Povo, e dos Pescadores.
Nas várias cenas recordam a fome, a exclusão por se sentirem “isolados de Setúbal”, as ruas de lama, as barracas sem o mínimo de condições. Mas também o companheirismo e os momentos de convívio à volta da fogueira, a cantar, a rir, a contar histórias.
“Eram tempos de pobreza, mas havia muita gente boa e tínhamos a arte de viver felizes”, garantem, enquanto olham para a vegetação e identificam os espaços onde antes se ergueram as barracas, junto do antigo forte militar.
Hoje, vivem em casas dignas, construídas pela força do povo. “Sem união, nada teria sido feito.”
Após o 25 de Abril de 1974, ocuparam casas vazias, mas logo perceberam que essa não era a solução. “Decidimos construir um bairro. Fundámos a Associação dos Moradores do Grito do Povo, vendemos rifas e organizámos espetáculos para angariar dinheiro. Depois apareceu o programa SAAL e isto andou para a frente.”
Do passado fez-se filme. Mas é também no presente que ele ganha vida. Os jovens participaram nas filmagens e deram voz às inquietações de hoje. A falta de oportunidades, os salários baixos, a saída de muitos para outros países.
O filme torna-se espelho de uma comunidade que não quer ser esquecida. “Não nos podemos esquecer de dizer aos nossos filhos de onde viemos e como nasceu este bairro a partir do esforço de todos”, dizem.
O coletivo sobrepõe-se ao individual. Foi assim que nasceram os bairros e “O Nosso Filme”.