António dos Santos é um tipógrafo. Aprendeu o ofício em criança, no antigo Orfanato Municipal de Setúbal, onde viveu mais de dez anos. Foi abandonado pela mãe, em tenra idade. Não guarda rancor.
A vida, cunhada a pulso, acabou por lhe sorrir. Aos 84 anos, é mestre de artes gráficas e guardião de memórias. “A impressão fascinou-me sempre.”
Descobriu a vocação no orfanato que o acolheu a 30 de dezembro de 1947. “Passava horas encostado aos vidros da porta da tipografia, simplesmente a ver.”
Foi, sobretudo, uma experiência sensorial. “Adorava o cheiro das tintas, os barulhos das máquinas.”
Tinha apenas um ano quando, um dia, a mãe o deixou no asilo Paula Borba, que, na época, servia de creche para filhos de operárias fabris, e não mais regressou. Meses depois, porque não podia ali ficar, é acolhido no asilo Infância Desvalida, só de raparigas. “Foram seis anos de felicidade. Era o ‘boneco’ delas.”
Aos sete anos muda-se para o orfanato gerido pela autarquia, atualmente Casa da Baía. “Deu futuro a centenas de rapazes, educação e trabalho”, recorda o setubalense, numa das salas do Centro de Convívio dos Ex-Alunos do Orfanato Municipal de Setúbal, onde funcionaram antigas oficinas.
Sapataria, carpintaria, encadernação e tipografia eram artes ensinadas nas oficinas para dar esperança de futuro aos órfãos, unidos pela camaradagem. “Éramos todos irmãos”, enfatiza, não obstante a adaptação difícil do menino, registado com o número 69 no orfanato e a alcunha de “mijão”.
No orfanato, fez a primária. “Na escola era mandrião, mas safava-me bem. Aos 11 anos, decidi ir logo para a tipografia.”
Voltou ao ensino, na antiga Escola Industrial e Comercial de Setúbal, mas não acaba o curso, para se dedicar em pleno ao ofício.
O caminho da mestria em artes gráficas foi interrompido pela tropa, entre Castelo Branco e Coimbra, terminada em Setúbal, no Regimento de Infantaria 11, com a função de amanuense.
Pelo meio, casou e teve dois filhos, para depois voltar ao trabalho, em diferentes locais, na cidade sadina.
“Vaidades à parte, era muito bom. Todas as oficinas me queriam”, diz, sem hesitações, o homem que, aos trinta e poucos anos, abriu, com mais dois amigos do orfanato, a Corlito – Centro Técnico de Artes Gráficas, num edifício instalado na frente ribeirinha. “Foi uma viagem fantástica de quase quarenta anos.”
Nascido a 16 de setembro de 1940, o mais novo de oito irmãos, que tem na praia setubalense de Albarquel um local de eleição, jogou duas épocas nos juniores do Vitória Futebol Clube. “Fomos três do orfanato treinar. Só um é que se aproveitou”, diz, em tom de brincadeira.
António dos Santos, mestre de artes gráficas, é também guardião de memórias, partilhadas em oito livros que escreveu e na exposição, visitável, de coleções e artefactos de outros tempos, cuidada e acarinhada no Centro de Convívio dos Ex-Alunos do Orfanato Municipal de Setúbal.