A escalada do radicalismo populista está a separar-nos uns dos outros.
As palavras são ditas, em tom de desabafo, já no fim da conversa que começou com João Bordeira a descrever a “felicidade” de ter feito parte de uma geração que para dar vazão à energia juvenil passava grande parte dos dias a criar música, cinema, teatro, pintura e, desse lá por onde desse, não desistia dos sonhos.
“Lutávamos para fazer coisas. Tínhamos bandas de garagem, mas não tínhamos dinheiro, respostas nem apoios. A malta organizava-se toda na mesma e arranjava maneira de tocar.”
João Bordeira nasceu em Setúbal, em 1979, onde estudou Artes Plásticas no Liceu.
Aos 21 anos, mudou-se para as Caldas da Rainha, para prosseguir os estudos na área e, apesar de já deambular artisticamente pela música, pela pintura e pela realização, foi na Escola Superior de Artes e Design que deu o salto na criação artística.
Lá, começou a criar projetos de videoarte e vídeo-instalação e fundou o Núcleo de Artes Performativas, que desenvolvia trabalhos performativos com recurso ao som e à dança como elementos plásticos.
A certa altura, no regresso a Setúbal, repleto de ideias a fervilharem o cérebro, criou até uma companhia de novo circo, teatro físico e dança, a Neocirka, entre muitos outros projetos.
O cinema, o discurso e o pensamento sobre o cinema de João Bordeira são inseparáveis da sua ligação de 45 anos ao concelho, durante os quais assinou os filmes “Pedaços”, 2005, “A Margem” e “A Costura de Clemente”, 2010, “Jaqueline”, 2012, “Emília”, 2013, “Parentell”, 2014, “Miradouro”, 2018, “Troino” e “Sal no Sangue”, 2022.
“A malta de Setúbal, da minha geração, é cabeçuda. Tem sede de lutar pelas coisas. Fomos para fora, mas voltámos, porque queremos criar é cá”, adianta. “Se quisermos continuar a criar, temos de lutar.”
Em 2024, o cineasta mantém o espírito ativo e atuante de quando, lá atrás, perseguia sonhos de bandas de garagem.
Os projetos concretizam-se em grandes trabalhos, haja vontade e teimosia para os tentar. “É preciso ser-se teimoso para fazer cinema em Portugal. Mais do que esperar pelas condições perfeitas para fazer, o importante é fazer.”
E João Bordeira não tem desistido. Nos últimos tempos, tem desbravado e feito acontecer, na procura de encontrar formas de, através de narrativas audiovisuais, mobilizar as gentes dos bairros típicos setubalenses em torno do tema em que trabalha desde 2018, com Sérgio Braz d’Almeida, antropólogas e uma série de entidades, a preservação das memórias, da identidade e das tradições de Setúbal e a construção de um arquivo público.
“O projeto é fazer filmes documentais dentro de uma contemporaneidade de dez anos sobre bairros de todas as freguesias com base no que as pessoas que lá vivem nos contam. O que nos interessa é o lado emocional das estórias”, diz.
Para isso “é preciso, muitas vezes, bater à porta das casas pessoas e entrevistá-las no universo delas, onde consta a fotografia, o ‘bibelozinho’,... Faz mais sentido assim do que convidá-las a irem a um estúdio frio, que não lhes diz nada.”
Com os olhos postos no passado, no presente e no futuro, João Bordeira faz Setúbal.